(CONTÉM SPOILERS)
Saezuru: the clouds gather, ou Saezuru Toriwa Habatakanai, conta, principalmente, a história de Yashiro, um adulto de trinta e seis anos de idade, um yakuza; seu envolvimento com a máfia, os riscos de vida que toma por ocupar tal cargo e seu universo pessoal que conhecemos com a chegada de Doumeki, seu guarda-costas, um adulto de vinte e cinco anos que acabou de sair da prisão. Para ler Saezuru temos que ter em mente duas coisas: é uma história adulta, num contexto yakuza, com homens que possuem passados e, quem sabe, presentes problemáticos, e claro, é um yaoi, então temos relações homossexuais.
Diferente de
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alguns yaois que encontramos, Saezuru não conta unicamente a história de ambos como um casal, mas desenvolve um problema referente ao contexto criminal em que estão, e recebe outros personagens secundários, e até um casal secundário, que alguns, no início, acabam se confundindo sobre qual seria o casal principal.
O casal principal é Doumeki e Yashiro, e o grande protagonista é Yashiro, esse homem aparentemente indiferente, apático, insensível, e desagradável que Yoneda Kou cria. Alguém que vamos aprendendo ser muito mais humano do que qualquer outro personagem que já encontramos, alguém que ganha um desenvolvimento espetacular e, de repente, ganha o favoritismo do leitor de forma natural devido a esse processo de empatia. Compreendemos, portanto, que Yashiro, na verdade, é solitário, triste, abandonado, traumatizado, e teme o amor. Com Yashiro conhecemos seu passado, que é retomado sempre durante a estória, o que deixa claro que sua infância, sua adolescência, sua vida não é assunto superado.
Yashiro está preso àquele eu que foi abandonado pela mãe, estuprado pelo padrasto desde muito cedo, estupros repetitivos que o faz tomar seu corpo como um objeto, que nunca será tratado com adoração e carinho, que o faz desenvolver um sadismo e um masoquismo tristes, e o faz acreditar que o sexo por sexo é sua única opção, a opção que toma todos os dias, com diferentes caras dia após dia. Além disso, Yashiro tem um amor não correspondido, que perdura desde seus tempos de escola pelo seu amigo Kageyama, o médico clandestino de seu grupo da máfia, que mesmo após tantos anos não está ciente de seus sentimentos, pois Yashiro lida também com a repressão e o silêncio de seu verdadeiro estado psicológico.
Então, conhecemos Doumeki, tão perturbado quanto Yashiro, um ex-policial que defendia a ordem e, de repente, estava na prisão. Motivo: espancou o próprio pai depois de tê-lo flagrado estuprando sua filha de criação. O próprio pai que também era um policial. E a irmã de consideração que, na verdade, é apaixonada por Doumeki. Uma bagunça. Um mundo, e uma família, dos quais Doumeki tenta escapar depois de cumprir sua pena ao ingressar os Yakuza, sob a “proteção” de Yashiro.
Os dois se conhecem, e logo Doumeki desenvolve uma admiração por Yashiro – que, nota-se, não é admirado por ninguém. Como poderia? Yashiro, o homossexual vulgar que subiu nos Yakuza usando o próprio corpo, sendo salvo pelo favoritismo que o chefe do grupo tinha por ele. Aquele que não se importava em ser visto tendo relações na própria mesa de seu escritório por/com algum subordinado seu, ou até por/com um superior, alguém sem salvação, e também sem vontade de viver.
No início, Doumeki é só mais um, alguém que Yashiro pode se aventurar com algum sexo selvagem. Mas o inesperado é descobrir que Doumeki é impotente, justamente pelo acontecimento com a irmã. Yashiro acha graça, e Doumeki, supostamente, não se importa. Mesmo assim, Yashiro faz questão de lhe dar orais, que duram por um tempo, até Doumeki perceber que sua impotência havia ido embora; por causa de Yashiro, aquela criatura vulgar e sensual, e diferente de todo mundo que Doumeki havia encontrado. Ele tenta esconder por um tempo, e todo o desenvolvimento, desde quando sua impotência é exposta até o momento em que Yashiro descobre tal fim, é meticulosamente demonstrado por imagens silenciosas, não-verbais, que na verdade dizem demais.
E daí temos a questão: por que Doumeki esconderia o fim da impotência se agora finalmente poderia ter relações com quem amava? Porque Yashiro já afastou um subordinado do grupo – na verdade tramou contra ele para que fosse expulso – quando descobriu que havia sentimentos em jogo. Doumeki atura tudo, menos ser afastado de seu chefe. Atura, até mesmo, perder seu dedo mínimo depois de ter falhado como seu guarda-costas e ter colocado sua vida em risco.
Com essa descoberta, há as tentativas de Yashiro de afastar Doumeki. Porém... não é a mesma coisa que foi com o outro subordinado. Yashiro também tem sentimentos, e notar isso o assusta; notar que a ideia de perder Doumeki o amedrontava, aquela pessoa fria sem preocupações – que até tinha aceitado o fato de seu amigo Kageyama ter se descoberto gay, ou seja lá o que for, com outro cara – o fez querer afastar Doumeki mais ainda. Ainda dava tempo de Doumeki desistir dos Yakuza e ter uma vida normal, o que evidencia o lado humano de Yashiro, que ama a ponto de querer o melhor para Doumeki, mas não quer se admitir amar também.
Doumeki é persistente, o que dá à história uma baita pitada de entretenimento. Quando Doumeki é expulso, ele corre atrás de Yashiro, e o medo, o amor, o ódio, a fúria de seu chefe pelo seu subordinado só cresce, e você sente tudo. É posto de forma espetacular. E Yashiro encontra todos os argumentos para dizer a Doumeki de onde vem aquela admiração por ele, e porque ele devia se livrar disso: Doumeki saiu da prisão desamparado e se agarrou à primeira coisa que encontrou quando saiu; ele.
E como é complexo. Os sentimentos de ambos envolvidos, a trama com os demais personagens, a homofobia descarada do vilão que quer tirar a vida de Yashiro, o fim da impotência de Doumeki, o motor da vida de Doumeki, as escolhas de Yashiro, as coisas diferentes que ele sente quando tem cenas sexuais com seu guarda-costas. A sensação assustadora, terrivelmente assustadora, de Doumeki ser o primeiro em sua mísera vida de trinta e seis anos que o faz sentir ser algo além de um objeto sexual. Ele odeia aquele sabor; e ele mente quando tem sua primeira relação de fato com Doumeki, que é a cena mais dolorida e intensa da minha triste vida de fujoshi. Yashiro, ali, despido, sendo torturado pela vista do corpo nu de Doumeki, que passa por si indiferente e solitário, ele com o braço quebrado, entrando debaixo do chuveiro, entorpecido, e notando só depois que ainda estava de roupa. Ele vulnerável, se entregando aos poucos, assumindo que a ideia de perdê-lo era terrível, admitindo que se importa. A cena do primeiro sexo dos dois é longa, e mortífera. Ela mata. Com toda aquela arte majestosa e linda de Yoneda Kou, o significado dela, as coisas desconhecidas que Yashiro sente, sua repulsa, ele negando o sexo frontal para que Doumeki não veja suas expressões. Ele repudia e sente um prazer imenso pela forma que Doumeki o toca ao mesmo tempo. Ah... é novo, é brilhante, é de tirar o fôlego. Doumeki está tentando fazê-lo mudar de ideia, talvez sem perceber. Foda-se o sexo sem significado.
Enfim, Yashiro foge e acontece um problemão. Yashiro tenta resolver os problemas de seu grupo sozinho, Doumeki vai atrás, mesmo tecnicamente demitido. Doumeki leva um tiro na perna do próprio Yashiro, que não quer que ele o siga. Yashiro quase morre. Doumeki quase morre. Ambos salvam a vida do outro. Doumeki se afasta e Yashiro perde a visão de um olho. Yashiro passa os próximos quatro anos sonhando com o bendito ex-guarda-costas, cada um com vidas diferentes, mas ainda nas sombras do mundo civilizado.
O reencontro de ambos é como uma faca no peito, e um indício de que iriam se reencontrar mais cedo ou mais tarde. A expressão supostamente impassível de Yashiro encontra a expressão 100% impassível de Doumeki, nas quais Yoneda Kou te treina ao longo do mangá para saber exatamente o que significam; uma mistura de: ah não, e ufa nos olhos de Yashiro. E na de Doumeki: oi. Lacônico mas internamente satisfeito por tê-lo reencontrado.
Enfim, é cheio, lotado, congestionado demais toda a trajetória da história. É complexo. E sobre ser uma história problemática ou não, você só entende da metade para frente. Dou uma resposta breve: não é problemática pois não aplaude o estupro, não aplaude a sexualidade precoce, mas coloca esses temas como traumas que nenhum dos dois superaram e justamente por isso os fizeram ser como são; perturbados, dilacerados, mas que fingem não ser. São, portanto, temas negativos, que Yoneda Kou não nos diz de forma explícita, porque não é para amadores lerem. É para ser lido de forma crítica, considerando o contexto yakuza, a questão psicológica e o porquê que são como são.
Não abordo aqui personagens secundários como Ryuzaki, por exemplo, que é meu personagem secundário favorito. Não falarei sobre o casal secundário também, que também ganha um desenvolvimento digno em uma única oneshot. Conheci Yoneda Kou com Doushitemo Furetakunai e senti a presença do diferente na narração. Todos os trabalhos de Yoneda Kou, conhecidos por mim até agora, são dessa espécie. Inovadores, que tiram seu fôlego, e merecem, sempre, nota máxima. É a arte yaoi mais linda que já vi, e ressignifica o humano, nos faz revisitar aquele acontecimento não usual nas nossas vidas, que escondemos, mas que compõem aquela parte infelizmente imensa das nossas almas.
Eu, particularmente, sou como eles. Escondo momentos, escondo composições. E sou definida por esses traumas, vivo com eles pois me habituei, mas preferiria outro rumo. São, junto a Lan Zhan e Wei Wuxian, de Mo Xiang Tong Xiu, Ash e Eiji, de Akimi Yoshida, e Atsushi Nagai e Kenzou Honda, de Yugi Yamada, os maiores atos e melhores desenvolvimentos que já vi. Aqueles que tiram o fôlego, que fazem doer, e que são incomparáveis e inesquecíveis. São, enfim, lindos na sua tragédia e eternos em seus amores. São Yashiro e Doumeki, da obra-prima Saezuru.
Sep 11, 2020
Saezuru Tori wa Habatakanai
(Manga)
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(CONTÉM SPOILERS)
Saezuru: the clouds gather, ou Saezuru Toriwa Habatakanai, conta, principalmente, a história de Yashiro, um adulto de trinta e seis anos de idade, um yakuza; seu envolvimento com a máfia, os riscos de vida que toma por ocupar tal cargo e seu universo pessoal que conhecemos com a chegada de Doumeki, seu guarda-costas, um adulto de vinte e cinco anos que acabou de sair da prisão. Para ler Saezuru temos que ter em mente duas coisas: é uma história adulta, num contexto yakuza, com homens que possuem passados e, quem sabe, presentes problemáticos, e claro, é um yaoi, então temos relações homossexuais. Diferente de ... |